sexta-feira, abril 04, 2008

TURISMO INFINITO


Fomos 5 e revisitamos ontem, encantadas, os heterónimos de Fernando Pessoa e as cartas ridículas de Ofélia Queirós no Teatro Nacional de São João, numa peça de António M. Feijó, encenada meticulosamente por Ricardo Pais.

Assumimos a imagem de José Eduardo Silva como a imagem desleixada de Bernardo Soares, o humilde guarda-livros que sonhava fumando…

Criei em mim várias personalidades. Crio personalidades constantemente. Cada
sonho meu é imediatamente, logo ao aparecer sonhado, encarnado numa outra
pessoa, que passa a sonhá-lo, e eu não.
Para criar, destruí-me; tanto me
exteriorizei dentro de mim, que dentro de mim não existo senão exteriormente.
Sou a cena viva onde passam vários actores representando várias peças."


A voz de Pedro Almendra levou-nos ao enigmático Fernando Pessoa …

Cerca de grandes muros quem te sonhas.
Depois, onde é visível o jardim
Através do portão de grade dada,
Põe quantas flores são as mais risonhas,
Para que te conheçam só assim.
Onde ninguém o vir não ponhas nada.


Faze canteiros como os que outros têm,
Onde os olhares possam entrever
O teu jardim com lho vais mostrar.
Mas onde és teu, e nunca o vê ninguém,
Deixa as flores que vêm do chão crescer
E deixa as ervas naturais medrar.


Faze de ti um duplo ser guardado;
E que ninguém, que veja e fite, possa
Saber mais que um jardim de quem tu és -
Um jardim ostensivo e reservado,
Por trás do qual a flor nativa roça
A erva tão pobre que nem tu a vês...


A surpreendente interpretação de João Reis fideliza o sensacionismo de Alvaro de Campos, o Engenheiro Naval que canta o mundo moderno e que intelectualiza sensações, talvez fruto do ópio ou apenas da sua morbidez inconformista…

Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,
Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,
Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco
Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,
Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,
Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,
Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas seguir?


Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,
Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.
Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem conseqüência,
Sempre, sempre, sempre,
Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,
Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida...



Descobrimos também o único heterónimo feminino de Fernando Pessoa, a corcunda Maria José, interpretada divinalmente por Emília Silvestre numa carta ao “Senhor António”…

“Senhor António:
O senhor nunca há de ver esta carta, nem eu a hei de ver segunda vez porque estou tuberculosa, mas eu quero escrever-lhe ainda que o senhor o não saiba, porque se não escrevo abafo.
O senhor não sabe quem eu sou, isto é, sabe mas não sabe a valer. Tem-me visto à janela quando o senhor passa para a oficina e eu olho para si, porque o espero a chegar, e sei a hora que o senhor chega. Deve sempre ter pensado sem importância na corcunda do primeiro andar da casa amarela, mas eu não penso senão em si. Sei que o senhor tem uma amante, que é aquela rapariga loura alta e bonita; eu tenho inveja dela mas não tenho ciúmes de si porque não tenho direito a ter nada, nem mesmo ciúmes. Eu gosto de si porque gosto de si, e tenho pena de não ser outra mulher, com outro corpo e outro feitio, e poder ir à rua e falar consigo ainda que o senhor me não desse razão de nada, mas eu estimava conhecê-lo de falar.(…)”


O guardador de rebanhos Alberto Caeiro, interpretado por Luís Araújo deixa uma breve passagem pela simplicidade e pelo mundo exterior:

Noite de S. João para além do muro do meu quintal.
Do lado de cá, eu sem noite de S. João.
Porque há S. João onde o festejam.
Para mim há uma sombra de luz de fogueiras na noite,
Um ruído de gargalhadas, os baques dos saltos.
E um grito casual de quem não sabe que eu existo.



Terminou uma hora e meia depois com sabor a pouco e parecendo incompleta, talvez por isso o infinito…

É talvez o último dia da minha vida.
Saudei o sol, levantando a mão direita,
Mas não o saudei, dizendo-lhe adeus,
Fiz sinal de gostar de o ver antes: mais nada.

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